Artigo de opinião da CCP | “O efeito placebo nas obrigações fiscais?”
Portugal é dos poucos países que tem um regime de controlo de bens em circulação, isto é, que determina que todos os bens em circulação, em território nacional, seja qual for a sua natureza ou espécie, que sejam objeto de operações realizadas por sujeitos passivos de imposto sobre o valor acrescentado, devam ser acompanhados de documentos de transporte.
Com este tipo de medidas pretende-se criar um risco acrescido pela não emissão de documentos comprovativos da transmissão de bens, obrigando a emitir um documento que identifica desde logo os intervenientes na operação e os bens que são objeto de transmissão, devendo acompanhar os correspondentes bens.
Como há uma longa tradição de emitir guias de remessa em vez de emitir, desde logo, a correspondente fatura, os documentos de transporte são, normalmente, constituídos por guias de remessa, que posteriormente são “faturadas”.
Atualmente, como são transmitidos quer os documentos de transporte quer as faturas, a AT tem disponível toda a informação para efeitos de controlo, permitindo, por um lado, saber se os bens que saíram do armazém foram ou não faturados, e quais os bens adquiridos por revendedores, desconhecendo-se a utilização que é feita dessa informação. Certo é que sobre os contribuintes recai o ónus da sua transmissão, com todos os custos de contexto inerentes.
Com efeito, nos termos do n.º 5 do artigo 5.º do Regime de Bens em Circulação (RBC), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 147/2003, de 11 de julho, na sua versão atual, os sujeitos passivos são obrigados a comunicar à AT os elementos dos documentos de transporte, incluindo o respetivo código único de documento, antes do início do transporte.
Essa comunicação é, em regra, feita por transmissão eletrónica de dados para a AT, contendo os seguintes elementos:
a) Nome, firma ou denominação social, domicílio ou sede e número de identificação fiscal do remetente;
b) Nome, firma ou denominação social, domicílio ou sede do destinatário ou adquirente;
c) Número de identificação fiscal do destinatário ou adquirente, quando este seja sujeito passivo, nos termos do artigo 2.º do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado;
d) Designação comercial dos bens, com indicação das quantidades.
Não queremos aqui falar das exceções a esta regra, que constituem um autêntico quebra-cabeças. É o que acontece quando o destinatário ou os bens a entregar em cada local de destino não sejam conhecidos na altura da saída dos locais de carga, em que os documentos de transporte são processados globalmente e impressos em papel ou emitidos eletronicamente, devendo proceder-se do seguinte modo à medida que forem feitos os fornecimentos:
a) No caso de entrega efetiva dos bens, os documentos de transporte devem ser processados em duplicado, utilizando-se o duplicado para justificar a saída dos bens;
b) No caso de saída de bens a incorporar em serviços prestados pelo remetente dos mesmos, deve a mesma ser registada em documento de transporte próprio, nomeadamente folha de obra ou outro documento equivalente.
É o que acontece igualmente quando haja alterações ao destinatário ou adquirente, ou ao local de destino, ocorridas durante o transporte, ou a não aceitação imediata e total dos bens transportados, que obrigam à emissão de documento de transporte adicional em papel, identificando a alteração e o documento alterado.
Nestes casos, os documentos de transporte são comunicados por transmissão eletrónica de dados ou, quando emitidos em papel, utilizando-se documentos pré-impressos em tipografia autorizada, por inserção no Portal das Finanças até ao 5.º dia útil seguinte ao do transporte.
Mas, deixando de lado estas complicações, com a comunicação dos documentos de transporte é atribuído um Código, atualmente de 11 dígitos, (n.º 7 do artigo 5.º do RBC), que dispensava a impressão do documento de transporte, no que foi anunciado como uma medida de simplificação e desmaterialização de obrigações fiscais.
Com efeito, era pressuposto que os agentes fiscalizadores teriam equipamentos que permitiriam a partir do referido Código consultar o documento de transporte já comunicado e residente na base de dados da AT, fazendo-se a conferência das mercadorias a partir da discriminação constante desse documento de transporte desmaterializado. E, dizemos que era pressuposto, porque a avaliar pelo número de autos que são levantados indevidamente, com a mais variada e confusa fundamentação, relativamente a documentos de transporte devidamente emitidos e comunicados, algo parece não correr bem neste processo.
E, agora, findo a período de suspensão, aparentemente, como o mencionado código parece não ser suficientemente extenso, eis que é substituído na sua função, pelo designado código único de documento (ATCUD) e pelo código de barras bidimensional (código QR), de acordo com as alterações introduzidas pelo DL n.º 28/2019, de 15 de fevereiro (a sua entrada em vigor foi suspensa durante o ano de 2021, nos termos do artigo 40.º da Lei n.º 75-B/2020, de 31 de dezembro).
Ora, como sabemos, o ATCUD é composto pela concatenação do Código de Validação e do Número Sequencial dentro da série, sendo que o código de validação tem um comprimento mínimo de oito (8) carateres, prevendo-se na estrutura de dados do SAF-T (PT) que possa ter até 100 caracteres.
Talvez face ao elevado número de caracteres do ATCUD, e para simplificar a sua leitura aos agentes fiscalizadores, a AT tenha obrigado os contribuintes a apresentar também o código QR, o que seria, no mínimo, original.
Todavia, é a única explicação lógica que encontramos.
O código QR foi apresentado na Portaria n.º 195/2020, de 13 de agosto, como tendo por finalidade “a simplificação na comunicação de faturas por parte de pessoas singulares para determinação das respetivas despesas dedutíveis em sede de IRS, incrementando, simultaneamente, o controlo das operações realizadas pelos sujeitos passivos tendo em vista combater a economia informal, a fraude e a evasão fiscais”.
Ora, como se trata de despesas pessoais, e aplicável apenas para despesas familiares (n.º 3 do artigo 78.º-B, do CIRS), por razões relacionadas com a proteção de dados pessoais, os elementos que devem constar do referido código QR não incluem a discriminação dos produtos adquiridos e, de acordo com as Especificações Técnicas do Código de Barras Bidimensional – Código QR, disponibilizadas pela AT, não incluem igualmente outra informação relevante para o controlo dos bens em circulação, como é o caso dos locais de carga e descarga, hora do início do transporte etc.
E, sendo assim, a apresentação do código QR não serve, supostamente, para o controlo dos bens em circulação, pelo menos, para uma leitura imediata da identificação dos bens transportados, por parte dos agentes fiscalizadores através de um simples leitor de QR Code.
Aliás, só por milagre é que serviria!
Supostamente, a medida foi desenhada para “simplificar a comunicação de faturas por parte de pessoas singulares para determinação das respetivas despesas dedutíveis em sede de IRS”, mas a obrigação do código QR foi generalizada, tendo-se tornado também obrigatório nas operações entre empresas, isto é, nas faturas emitidas entre sujeitos passivos de IVA e, inclusive, nos documentos de transporte, sem que tenha sido explicitada a correspondente finalidade.
O que só pode significar que, ou a medida é miraculosa, simplifica e serve para tudo, ou, como parece ser o caso, não passa de um placebo, que todos os contribuintes têm de suportar com os inerentes custos de contexto, ainda que não sirva para nada, nem para a administração fiscal.
Resta saber se, como na medicina, alguns pacientes apresentam um possível alívio nos sintomas.