COVID-19 | A propósito da relevância fiscal do modelo do justo valor
Artigo de opinião do Gabinete Fiscal da CCP «A propósito da relevância fiscal do modelo do justo valor.
Como é sabido, a introdução do atual Sistema de Normalização Contabilística, que entrou em vigor em 2010, implicou a adaptação do normativo do Código do IRC ao novo paradigma contabilístico, uma vez que a tributação do rendimento das empresas assenta no lucro apurado com base na contabilidade, com as correções previstas naquele Código, na linha do modelo de dependência parcial entre fiscalidade e contabilidade que, com assinaláveis diferenças, vem sendo seguido desde os anos 60 do século passado.
No quadro dessa adaptação, assistiu-se a uma aproximação entre contabilidade e fiscalidade, sendo exemplo disso a aceitação do modelo do justo valor em instrumentos financeiros, embora condicionada à verificação de um determinado conjunto de pressupostos.
É nessa linha de aproximação que encontramos as disposições das alíneas f) do n.º 1 do artigo 20.º e da alínea j) do nº 2 do artigo 23.º do Código do IRC, onde nos aparecem elencadas, entre os rendimentos e gastos que concorrem para a formação do lucro tributável, as variações decorrentes da aplicação do modelo do justo valor a instrumentos financeiros.
Como se referiu, essa aceitação não é universal, porquanto o artigo 18.º, n.º 9, alínea a), do Código do IRC veio circunscrever o âmbito da aplicação dos efeitos do modelo do justo valor. Nos seus termos, “Os ajustamentos decorrentes da aplicação do justo valor não concorrem para a formação do lucro tributável, sendo imputados como rendimentos ou gastos no período de tributação em que os elementos ou direitos que lhes deram origem sejam alienados, exercidos, extintos ou liquidados, exceto quando:
a) Respeitem a instrumentos financeiros reconhecidos pelo justo valor através de resultados, desde que, quando se trate de instrumentos
de capital próprio, tenham um preço formado num mercado regulamentado e o sujeito passivo não detenha, direta ou indiretamente, uma participação no capital igual ou superior a 5% do respetivo capital social; ou
b) Tal se encontre expressamente previsto neste Código”.
Trata-se de uma redação não isenta de críticas pelas dúvidas que induz a quem tem de lidar no dia-a-dia com estas temáticas.
Com efeito, lendo o Relatório do Grupo de Trabalho criado por Despacho de 23 de Janeiro de 2006 do Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, in Cadernos de CTF 200, damos conta do receio que pairava quanto à adoção generalizada do modelo do justo valor, figurando entre as preocupações apresentadas “o incremento da volatilidade do lucro tributável … decorrente da flutuação das cotações de mercado” (págs. 100).
Em face delas, o Grupo de Trabalho propunha o afastamento da aplicação deste modelo “relativamente às partes de capital em sociedades que correspondam a participações significativas (por exemplo, na parte em que atinja ou ultrapasse 5% do capital social)” (idem).
Propunha ainda o afastamento “da dedutibilidade fiscal das perdas decorrentes de variações do justo valor respeitantes a instrumentos de capital próprio que não sejam admitidos à negociação em mercado regulamentado” (idem), sendo omisso quanto ao tratamento a dar ao ganhos da mesma natureza, ficando por saber se o Grupo preconizaria a sua relevância ou se aguardaria pela realização para sujeitar a tributação o ganho ou perda obtido, apenas nesse data. Felizmente, esse tema está hoje ultrapassado, com a revogação do n.º 3 do artigo 45.º do CIRC, ocorrida em 2013, por ocasião da reforma da tributação do rendimento das pessoas coletivas.
No entanto, quanto aos demais instrumentos financeiros, o Grupo de Trabalho recomendava “a adoção do modelo do justo valor para efeitos fiscais, mas somente quando as variações sejam reconhecidas em resultados” (idem).
Deixando as recomendações do referido Grupo de Trabalho, encontramos, no texto do preâmbulo do Decreto-Lei que procedeu à adaptação do Código do IRC ao SNC, a seguinte passagem que nos permite conhecer, de forma mais aproximada, a mens legis: “é aceite a aplicação do modelo do justo valor em instrumentos financeiros, cuja contrapartida seja reconhecida através de resultados, mas apenas nos casos em que a fiabilidade da determinação do justo valor esteja em princípio assegurada.
Assim, excluem-se os instrumentos de capital próprio que não tenham um preço formado num mercado regulamentado. Além disso, manteve -se a aplicação do princípio da realização relativamente aos instrumentos financeiros mensurados ao justo valor cuja contrapartida seja reconhecida em capitais próprios, bem como às partes de capital que correspondam a mais de 5 % do capital social, ainda que reconhecidas pelo justo valor através de resultados.” (negrito nosso)
Ou seja, como regra geral, proclama-se a aceitação do modelo de justo valor a instrumentos financeiros cuja contrapartida seja reconhecida através de resultados, contanto que a fiabilidade da determinação do justo valor seja reconhecida através de resultados.
Haverá, portanto, que analisar o que o SNC estabelece neste domínio. Ora, a NCRF 27 determina o reconhecimento de todos os ativos financeiros pelo justo valor com as alterações de justo valor reconhecidas na demonstração de resultados, exceto quanto a:
a) Instrumentos de capital próprio de uma outra entidade que não sejam negociados publicamente e cujo justo valor não possa ser
obtido de forma fiável, bem como derivados que estejam associados a e devam ser liquidados pela entrega de tais instrumentos, os quais devem ser mensurados ao custo menos perdas por imparidade;
b) Contratos para conceder ou contrair empréstimos que não possam ser liquidados em base líquida, quando executados, se espera que reúnam as condições para reconhecimento ao custo ou ao custo amortizado menos perdas por imparidade, e a entidade designe, no momento do reconhecimento inicial, para serem mensurados ao custo menos perdas por imparidade;
c) Ativos financeiros que a entidade designe, no momento do seu reconhecimento inicial, para ser mensurado ao custo amortizado (utilizando o método da taxa de juro efetiva) menos qualquer perda por imparidade; ou
d) Ativos financeiros não derivados a serem detidos até à maturidade, os quais deverão ser mensurados ao custo amortizado.
Relativamente a passivos financeiros, a mensuração deverá ser feita pelo custo amortizado usando o método do juro efetivo, exceto quanto a passivos financeiros classificados como detidos para negociação, os quais devem ser mensurados pelo justo valor com as alterações de justo valor reconhecidas na demonstração de resultados.
Estando definido o leque de instrumentos financeiros que podem ser mensurados pelo justo valor por contrapartida de resultados, restaria saber o que se deve entender por fiabilidade da determinação do justo valor. Como não encontramos uma definição no Código do IRC, teremos de nos socorrer, uma vez mais, do SNC.
E a NCRF 27, a propósito da definição de justo valor, fornece-nos importantes pistas sobre as alternativas ao valor de mercado
relativamente aos instrumentos financeiros para os quais não possa ser facilmente identificado um mercado fiável. São elas, o uso do valor de mercado dos componentes dos instrumentos financeiros ou de um instrumento semelhante; ou de um valor resultante de modelos e técnicas de avaliação geralmente aceites, para os instrumentos financeiros para os quais não possa ser facilmente identificado um mercado fiável, devendo esses modelos ou técnicas de avaliação assegurar uma aproximação razoável ao valor de mercado.
Ou seja, em regra (e veremos mais à frente as exceções), para todos os instrumentos financeiros (ativos ou passivos) que nos termos da NCRF sejam mensurados ao justo valor, os rendimentos ou gastos resultantes da sua variação serão relevantes para efeitos fiscais, contanto que haja:
– um valor de mercado, relativamente aos instrumentos financeiros para os quais possa ser facilmente identificado um
mercado fiável;
– ou quando o seu valor de mercado não puder ser fiavelmente determinado:
o o valor de mercado dos componentes dos instrumentos financeiros ou de um instrumento semelhante; o ou a um valor resultante de modelos e técnicas de avaliação geralmente aceites, para os instrumentos financeiros para os quais não possa ser facilmente identificado um mercado fiável.
Mas, como se vê ainda do já citado preâmbulo, esta regra geral comporta duas exceções, dizendo ambas respeito a instrumentos de capital próprio.
Começamos por referir o que se considera instrumento de capital próprio “qualquer contrato que evidencie um interesse residual nos ativos de uma entidade após dedução de todos os seus passivos”, como de vê da NCRF 27.
Passemos, então, às exceções:
A primeira delas diz respeito aos instrumentos de capital próprio que não tenham um preço formado num mercado regulamentado. Ou seja, no domínio destes instrumentos, bastará a circunstância de não estarem cotados em mercado regulamentado para se afastar a relevância fiscal das variações decorrentes do modelo do justo valor.
Assim sendo, ainda que na contabilidade tenham sido mensurados ao justo valor, em virtude de, face a qualquer um dos métodos acima enunciados, ser possível determinar com fiabilidade o seu valor de mercado, para efeitos do apuramento do lucro tributável, haverá que proceder à eliminação dos correlativos efeitos.
A segunda delas diz respeito a uma subespécie concreta de instrumentos de capital próprio: as partes de capital. Quanto a estas, o modelo do justo valor também não terá relevância fiscal quando representem mais de 5 % do capital social.
Perguntar-se-á: a letra da lei expressou adequadamente esta mens legis?
Afigura-se-nos que não.
Efetivamente, a alínea a) do n.º 9 do artigo 18.º do Código do IRC aglutinou estas duas exceções podendo, inclusivamente, sugerir que há apenas uma exceção à aceitação, no plano fiscal, do modelo do justo valor para as partes de capital que representem, direta ou indiretamente, uma participação igual ou superior a 5%.
Já percebemos que não era essa a intenção do legislador, sendo, a nosso ver, oportuno equacionar a revisão da redação desta norma. Mas, enquanto isso não for feito, deparamo-nos com leituras confusas da norma.
São exemplo disso algumas respostas técnicas dadas no quadro dos pedidos de esclarecimentos, em que se expressa o entendimento de que “apenas as ações (instrumentos de capital próprio) detidas que representem uma participação, direta ou indireta, superior a 5%, … (igual ou superior a 5%, …), e sejam cotadas num mercado regulamentado (p.ex. bolsa de valores), as respetivas variações do justo valor, registados como perdas ou ganhos, apenas são relevantes em termos fiscais no período em que forem realizadas essas ações”
Há ainda exemplos em que a inspeção tributária, louvando-se nestas posições, sustenta que unidades de participação em fundos de investimentos nem sequer são instrumentos de capital próprio, ao arrepio da clareza da definição plasmada na supra citada NCRF. Em face de tudo isto, não é difícil adivinhar a confusão que estas matérias suscitam na prática e a correlativa necessidade de clarificação.
Felizmente, a AT veio pronunciar-se recentemente sobre esta temática em sede de informação vinculativa, resolvendo algumas das dificuldades de interpretação daquela norma, embora, a nosso ver, de forma ainda
incompleta.
Referimo-nos à informação vinculativa n.º 2249/20, PIV n.º 17690, com despacho da Subdiretora-geral dos Impostos sobre o Rendimento e Relações Internacionais, de 08-07-2020.
Nela se diz de forma perentória, referindo-se a fundos de investimento imobiliário e a fundos de capital de risco que “as unidades de participação em causa constituem instrumentos de capital próprio reconhecidos pelo justo valor através de resultados, em conformidade com a IAS 32 e com a IFRS 9”. Pelo menos, já ficaram aqui resolvidas as dúvidas de que alguns órgãos da AT suscitavam a este respeito.
Mas, para além disso, também se vem dizer, na citada informação vinculativa, a propósito de unidades de participação em FCR que “passando essas unidades de participação a verificar os requisitos da alínea a) do n.º 9 do art.º 18.º do CIRC, considera-se que é como se a entidade tivesse procedido a uma transmissão (e simultaneamente à reaquisição) desses instrumentos financeiros, verificando-se, assim, o correspondente apuramento de uma mais-valia ou menos- valia fiscal. Os ajustamentos decorrentes do modelo do justo valor passam, então, a partir desse momento, a ser aceites fiscalmente.
Por sua vez, se tais instrumentos deixarem, posteriormente, de verificar os requisitos da alínea a) do n.º 9 do art.º 18.º do CIRC, os mesmos passam a estar abrangidos novamente pelo regime das mais-valias e menos-valias constante dos art.ºs 46.º e seguintes do CIRC, sendo que o justo valor nesse momento (em que deixam de verificar os referidos requisitos) deve ser considerado como constituindo o respetivo valor de aquisição, nomeadamente para efeitos de apuramento de uma eventual mais-valia ou menos-valia futura”.
Não sendo, como antecipámos, totalmente esclarecedora, quanto ao âmbito da citada alínea a), a informação vinculativa não deixa, ainda assim, de indicar, de forma clara, que as unidades de participação são instrumentos de capital próprio. Nessa conformidade, ficam sujeitos aos condicionalismos da alínea a), restando saber se lhe são aplicáveis apenas o requisito de terem preço formado em mercado de capitais ou ainda o requisito dos 5%.
Literalmente, dir-se-ia que esse segundo condicionalismo se deveria aplicar-se apenas às partes sociais. Em abono desta interpretação encontramos o preâmbulo do Decreto-Lei nº 159/2009, de 13 de julho.
Todavia, essa leitura não deixa de enfermar, pelo menos a nosso ver, de algumas limitações, se pensarmos que, no que concerne a fundos de investimentos, os mesmos tanto podem ser organizados sob a forma de patrimónios autónomos, representados por unidades de participação, como sob a forma societária, representados por ações. Ora, se admitíssemos que uma interpretação a dar era a de que o segundo condicionalismo (a percentagem de participação no capital) se aplica apenas a sociedades (como se afigura decorrer da terminologia usada: “capital social”), estaríamos a tratar diferenciadamente os fundos, consoante a forma como os mesmos estiverem organizados, o que põe em causa os princípios de neutralidade que deveriam enformar o nosso sistema tributário.
É um tema que não se pode esgotar nesta sede e que deverá merecer a atenção do legislador ou da própria AT, no sentido de clarificar de forma cabal o alcance da norma, contribuindo positivamente para a desejável segurança jurídica.
Consulte circular CCP.